Berlioz
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Posted: 18 May 2010, 05:16 |
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Crítica ao Alice in Wonderland do Tim Burton, numa parte de um trabalho para Seminário que compara os aspectos positivos e negativos dos filmes de 1951, 1999, e 2010 em relação ao original. Para quem tiver paciência: Este filme é, na minha opinião, uma faca de dois gumes. Infelizmente, um desses gumes está mais afiado do que o outro. A crítica divide-se ferozmente em relação ao que Burton fez à história de Carroll, mas o ponto de foco nesta análise é simplesmente a sua funcionalidade como filme e a sua relação com o original.
Ignorando os efeitos 3D supérfluos, o aspecto visual do filme é o seu trunfo. O ambiente surreal típico de Burton é evidente, o que oferece uma alternativa importante ao estilo modernista de Mary Blair restrito ao filme puramente de animação de 1951.
O grande problema do filme de Burton é o enredo. Não se trata de se ser purista ou de considerar que não se poderia tecer um épico a partir de Alice (é bem possível fazê-lo bem, e recomendo como exemplo disso a trilogia literária The Looking Glass Wars de Frank Beddor), trata-se, sim, de reconhecer quando não há a possibilidade de construir um épico quando os personagens não encontram lugar no espaço emocional do espectador. Passo a explicar:
- Na maioria dos casos, um épico segue uma narrativa linear em que um determinado herói deve cumprir o seu destino ou objectivo. Na nossa era, a narrativa de um épico já pode até ser considerada cliché, pois é algo que qualquer pessoa pode prever. Neste caso específico existe um personagem escolhido (Alice), os personagens de apoio e de justificação do objectivo (a rainha branca, o gato de Cheshire, os gémeos Tweedle, a lagarta, o coelho branco, etc), o mentor/inspiração/guia (o chapeleiro louco), a(s) antítese(s) do escolhido (o vilão ou vilões, ou seja, a rainha vermelha, o valete de copas, o Jabberwocky) e os obstáculos (a viagem, a interiorização do estatuto como heroína, a batalha, etc).
- O herói e os personagens que o rodeiam devem formar uma ligação emocional com o espectador, ou seja, deve ser possível sentir-se que a perda de um personagem significa a perda de parte da comunidade que está em risco ou que necessita do herói. Não pode existir ligação emocional a personagens que não são consistentes, e é aqui que existe o impasse. Os personagens representados integralmente por actores (ou seja, excluindo os de animação) que seriam os de suposta maior relevância não são consistentes. O exemplo mais claro disso é o chapeleiro louco, que não tem espinha dorsal ou base de personalidade, pois varia demasiado de emoção e comporta-se como um verdadeiro enigma ambulante. Se não existe a possibilidade de contacto com um personagem por este ser demasiado complexo, não se pode colocar esse personagem num lugar-chave de ligação ao herói e, consequentemente, à narrativa. Este erro repete-se vezes sem conta em todos os personagens, embora seja mais evidente no referido acima. Aqueles que sofrem menos de falta de consistência simplesmente sofrem por efeito indirecto, visto que basta uma incongruência para destruir a relevância de uma narrativa.
Poderemos então argumentar que um filme de Alice terá de ter sempre incongruências, visto ser apenas uma sequência de eventos insanos. Estaria correcto, mas Burton tenta ter o melhor de tudo sem se aperceber que são aspectos incompatíveis. Se pensarmos neste filme como um épico, chegaremos à conclusão que é um mau épico, visto que não há emotional hook, como explicado acima. Alternativamente, se o pensarmos como uma sequência de eventos insanos, chegaremos à conclusão que não funciona de todo, visto que ao tentar ser um épico delineia imediatamente uma narrativa directa que impede qualquer tipo de distorção, surpresa ou inserção de informação nova ao ritmo do que seria Alice. O filme fica, portanto, preso num limbo que deixa uma sensação de falta de realização.
Tim Burton tem direito a toda a liberdade de criar uma sequela à história original e de lhe conferir uma profundidade e negridão bem equilibradas, mas o erro grave cometido neste caso não é o de infidelidade, visto ser algo completamente diferente, mas de genuína má construção fílmica.
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